quinta-feira, novembro 29, 2007

A funcionária

Quase invisível, dir-se-ia, a sombra de lãs neutras, ali sentada, há trinta e cinco anos. Calhou que os olhos eram olhos de chorar aflito e ela ali a passar encontrou-se nesses olhos, daquela sombra quase invisível, dir-se-ia, uma sombra de lãs neutras. Precisava apenas de uma pergunta – o que tem?- para desensombrar-se num choro então audível, explicando a dor de ouvir uma repreensão injusta depois de trinta e cinco anos a sorrir por fora. Ali, de repente, no espaço de um corpo quase invisível, uma revolução: o parto das dores de uma vida inteira, vida subitamente revelada como uma introdução à mágoa de hoje, Angola abandonada, marido morto tão novinho, uma vida de viúva sozinha, de filhos seus e bastardos por criar, sempre perdoando, e agora isto: uma repreensão injusta a matá-la de vez.

sábado, novembro 24, 2007

Pensamentos imediatos II

As mulheres têm uma coragem muito específica: verbalizam o que sentem. E assim permitem a muitos (finalmente) falarem.
Para concordarem com elas.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Pensamentos imediatos I

(Notícia no jornal de hoje: descoberta de fóssil mostra que já existiram escorpiões maiores que um homem)

Ainda existem. Ainda existem.

sábado, novembro 17, 2007

tudo o que acontece é um parêntesis na saudade.
presta-se asim muita atenção às portas e às paredes que são isto:
-uma pessoa a dizer até amanhã;
- um sono interrompido;
- a previsão da segunda parte do sono;
- um papel tingido de lápis dos olhos;
- o silêncio de um copo vazio;
- o silêncio de uma carta que não chega;
- o frio a crescer nas costas;
- o silêncio do fumo do cigarro;
- as pessoas ao fundo da fotografia;
- o silêncio dos livros por ler;
- o silêncio;
- os ruídos interiores;
- o silêncio;
- o silêncio.

terça-feira, novembro 13, 2007

Os seus dedos aventuram-se trémulos no teclado. O peso dos sonhos, mesmo os não recordados, dizem-lhe é hoje que te não aguentas. Frases, músicas, choros, sorrisos dela são o estuque deste tremor. Penteia-se ao espelho e imagina a perplexidade alheia: tão nova, tão bonita. Minha querida, por quê?, pensa. Tem um remoinho no centro da cabeça que puxa pelas lágrimas de fora para dentro, as sombras estão no lugar, a chave do carro dita a luta de sempre: um dia por cumprir. Sem enlouquecer. Os corpos todos já não amparam tanto medo físico, chegou o dia em que o peito esmagado por outro não se dá por vencido, nem por quinze minutos. Sim, sim, claro, diz, que interessante, diz, e por dentro a gritar desaparece porque estás a diluir-me. Fica para ali cheia de humidade sem dono ou sem intenção ou sem amor. Na noite anterior, numa estrada ondulada, deu pela sua solidão, não como sempre, mas num tiroteio que a conduziu, silenciosa, até à morte de tudo isto que é dizer boa noite. A invenção do amor é o poema que referencia uma nova manhã.
Pode ser que ninguém dê por tanta pele amedrontada. Pode ser que ao entardecer um sorriso tenha a generosidade de um sentido.

sexta-feira, novembro 09, 2007

Anda a ler exortações. Deus traiu os séculos todos e afinal não existe. É por isso que a cama dói de noite. A dor é sempre uma ausência. Por isso dor e solidão são a mesma coisa. Imagina uma pergunta, o que te fez sofrer?, e sabe a sua resposta, foi o normal, amor e morte, se é que não são sinónimos. De noite concentra-se na mão direita, no antebraço, no pescoço, na testa, nos olhos, e por aí fora, obediente aos exercícios descritos numa folha, vencer a ansiedade, pensa: deus não existe, e masturba-se com rapidez, até matar deus de vez, que já era apenas uma ausência, até dizer, enquanto se esfrega: que restará de deus se pensar nele em minúsculas?
De manhã, quando lhe dizem que o jornal não chegou, perde a cabeça e explode a chorar.